terça-feira, 10 de janeiro de 2012

As Receitas do Estado

Ainda a propósito de um «post» recente sobre o pagamento de
multas com retroactivo relativos ao Imposto Único de Circulação, ocorre um par
de linhas de pensamento: as políticas de defesa ambiental e sanitária dos
Estados «ocidentais»; o sistema de legislação/tributação do Estado.
Principiemos por este último:
É usual ouvir a expressão, que estará consagrada algures na
legislação nacional, de que «a ignorância
da Lei não assiste ao infractor». A redacção talvez não seja exactamente
esta, mas o espírito da frase é perceptível – até porque já todos a temos
ouvido de modo recorrente. E vem aqui à colação porque me parece não somente de
um enorme cinismo, como também totalmente esvaziada de sentido moral e humano –
tal como acontece com uma boa quantidade de «frases feitas».
Invariavelmente, vem da boca dos advogados, que estão bem
posicionados para a usarem: afinal, a profissão deles é estudar a Lei. Porém,
estar a punir alguém por estar a violar uma regra que manifestamente ignorava,
parece-me de uma perfídia insuportável, e ainda levar em cima com uma frase-feita
como «a ignorância da Lei não assiste ao
infractor» é mesmo a cereja em cima do bolo da hipocrisia. Não me resigno à
idéia de ser tratado como um criminoso por violar uma regra que desconhecia –
ou mesmo por violar uma regra com a qual discordo.
O que pensarão o legislador e o advogado?! Que o cidadão
deve passar diariamente a estudar o Diário da República (e já agora nas suas várias Séries?!...), para
que não lhe escape nenhuma medida que se arrisque a infringir???!!! Não admira
que Franz Kafka tenha dedicado uma parte tão dilatada da sua obra à Lei e ao
Estado. Já para não falar que me parece que o dogma de que «o bem fazer» e a
«Lei» são as duas a mesma coisa me um absurdo. O principal ditâmen da acção
humana devia ser a consciência interiorizada de que estou fazendo a coisa
certa. O que significa que, pessoalmente, tenho muitas reservas em aceitar
passivamente essa outra noção de que «Cumpriu-se a Lei» equivalha a dizer
«praticou-se o Bem». O ex-Ministro Pina Moura, a propósito de já-não-sei que
trapalhadas do mundo empresarial sentencionou qualquer coisa deste tipo: não
existe Moral fora do âmbito escrito da Lei. Ou seja: se foi cumprida a Lei,
então não resta espaço de legitimidade à crítica ética.
Num breve ensaio sobre a obra do escritor judeu
germano-checo da autoria de ???, sugere-se que a Lei não é mais do que a
consagração dos interesses dos mais fortes. Nem que seja de modo inconsciente
(e já não era mau que fosse apenas nesse registo…), o legislador há-de se
projectar nas leis que redige. E assim tem sido, através dos séculos. Fá-lo na
defesa de interesses pessoais, colectivos, patrimoniais, corporativos, etc.,
etc. O que faz admitir, naturalmente, que aqueles que não têm voz activa não se
fazem ouvir. E assim, já se sabe: «quem
cala consente» e «a ignorância da Lei
não assiste o infractor». Quase todas as frases-feitas são estúpidas, e
estas não são excepção.
Já aqui foi escrito: o Estado talvez não seja pessoa-de-bem.
Escrevo «talvez» por pudor e precaução. Num Estado ideal, não devia pairar
sequer uma sombra de dúvida na mente do cidadão – e na mente do cidadão
português, as sombras da dúvida são bem escuras. Se não vejamos - o que é mais
rentável ao Estado: o cidadão que cumpre diligentemente, ou aquele que tem que
pagar multa?! Ou vista a coisa por outro prisma: que consequências haveriam
para a receita do Estado se toda a gente passasse a cumprir, e por esse motivo ninguém
mais pagasse multas?!
Faz lembrar uma ironia que há tempos me ocorreu: o Estado
está preocupado com as emissões de CO2, com a delapidação dos recursos naturais
em hidro-carbonetos, e também com a saúde e os pulmões dos seus cidadãos. O
Estado sabe porém (ou sabê-lo-á o Ministério das Finanças) que entrava em
falência em pouco tempo se todos os portugueses deixassem de usar o automóvel
(e de abastecê-lo com gasolina, de pagar o IUC, IA, etc.) ou de fumar cigarros.
E falia também se todos os portugueses passassem a ler diariamente o Diário da
República e deixassem de incumprir, acabando-se a receita da multa…

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