segunda-feira, 26 de março de 2012

Vozes que se ouvem

Durante muito tempo questionei-me sobre o motivo de muitas vozes se ouvirem mais do que outras. Ao nível do empresariado, todos aqueles que representavam consumo, despesa, construção e banca eram muito ouvidos. Os outros, nomeadamente os empresários exportadores, nunca eram chamados aos microfones. Também os académicos e economistas não íam sendo muito consultados, e por isso um determinado tipo de “pensamento dominante” ia comandando o destino de Portugal. Quando lia J.K.Galbraith lembro-me bem de o autor falar com frequência sobre como o “pensamento dominante” se sobrepunha à razão, sugerindo mesmo que esse pensamento afinal não era bem pensamento, sendo mais um movimento de pessoas de diferentes sectores da sociedade que partilhavam interesses comuns e que tinham os seus mecanismos próprios de os fazer valer. Tinha para mim de que isso talvez mais não fosse do que um desabafo de académico incompreendido.

A vivência recente do que se passou em Portugal ofereceu-me uma melhor percepção do provável estado de espírito do Sr. Galbraith. Passei a entender melhor o que era o “pensamento dominante”. De facto mais um movimento que pensamento. Aqui há uns poucos anos (talvez uns 5 ou 6 anos), alguns empresários de sucesso foram entrevistados na televisão com o intuito de falarem sobre Portugal. Um dos eleitos era um grande importador de automóveis. Não tinha memória de ler entrevista sua em jornais ou revistas, pelo que provavelmente o seu vasto e valoroso pensamento teria agora uma extraordinária oportunidade de se revelar, sendo então oferecido aos Portugueses uma extraordinária oportunidade de saborear alguns elementos de como construir fortuna. Paralelamente, o mesmo empresário vinha qualificado de pertencer a uma família com vasta linhagem, dando assim à entrevista aquela sedução mista de descobrir como fazer dinheiro em paralelo com a partilha de saberes de quem experimenta convivências em existências superiores.

Tal não é o meu espanto, e seguramente o da maioria dos Portugueses, que mesmo espremendo ao máximo todas as palavras e ideias da personagem muito pouco se ia aproveitando. E a entrevista seguia morna. Às escassas ideias do entrevistado permitia-se uma reverente deferência pela quantidade aristocrática em exposição e pelos elevados resultados líquidos da conta de exploração dos seus empreendimentos. E a evidente falta de rasgo ia sendo compensada pela sua jovialidade e boa aparência. O mais que se conseguia da entrevista era um “eu acredito em Portugal e na capacidade dos Portugueses”. Nada mais. Não será errado afirmar que se esperava um pouco mais, embora de modo nenhum se viu a personagem reduzida nas suas qualidades empresariais, suportadas, aliás, pela inequívoca objectividade dos seus impressionantes resultados financeiros.

Contudo, o problema não residia no entrevistado e nas suas capacidades de conceber Portugal. O que seguramente lhe sobrava em capacidade de empreendedorismo e sagacidade ia-lhe faltando excessivamente para os objectivos da entrevista. A questão é que se quis ouvir muito de quem se calhar não tinha tanto para dizer. Aqui há pouco tempo o Sr. Krugman veio relembrar que o empresariado não é lá muito bom conselheiro económico. O mais que conseguem extrapolar da sua actividade para a economia é que a confiança é boa para os negócios e para a economia. Ora não é preciso ser-se empresário para entender esta verdade universal. E em tom de puro gozo o Sr. Krugman ainda relembrou que muito escapa ao empresariado em termos de noções de economia, a começar pela “armadilha da liquidez”.

Como todos agora sabemos o problema actual de Portugal reside num profundo desiquilíbrio macroeconómico que se começou a construir em 1985. Sem o saber bem, o elevado sucesso daquele empresário contribui parcelarmente para o problema que nos aflige. Contribuição conjunta com os senhores da banca que alardeavam toda a sua auréola de sucesso à custa de um crédito desenfreado para aquisição de casa e carros. E ao duo não faltava o poder político que seguia todo contente com o movimento em vigor, sabendo de antemão que tudo o que fosse chamar à atenção à barbaridade em curso não dava votos. Assim, o “pensamento dominante” não teve voz contrária que fosse ouvida. Infelizmente.

Agora, felizmente, vamos ouvindo pensamento. A ocasião a isso nos obriga. E felizmente o mesmo não é dominante, pois não existem pessoas de diferentes sectores da sociedade a puxarem para um mesmo lado, ainda que involuntariamente. Ouvem-se agora mais economistas e outros pensadores livres, pessoas que estão, genericamente, em muito melhor posição para emitir opinião sobre a sociedade que muitos dos empresários, políticos, ou sindicalistas.

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