A encruzilhada em que Portugal se encontra expressa bem a falta de visão,
qualidade, e capacidade dos Primeiros-ministros e demais pessoal político que
temos tido. Mas não só. As resmas de representantes de interesses instalados
emanam uma quantidade de ruído que quase consegue atrapalhar os raciocínios dos
mais lúcidos, sem contar que têm um desprezo infinito pelo bem comum e pelo
longo prazo. Muito poucos são aqueles que se interrogam sobre questões de
fundo, como se invocá-las mais não fosse do que uma manifestação de mero
diletantismo. Assim que surge algum arrojo em emanar pensamento mais profundo a
sensação imediata é de que o seu autor se “atreveu” a colocar em cima da mesa o
que todos já deveriam ter colocado, remetendo toda uma plateia de pseudo
defensores pátrios para uma posição defensiva numa clara demonstração de
pequenez de espírito e falta de vontade de aceitar o debate numa pura base
argumentativa, o que mais não denuncia do que uma mera reacção de defesa do
interesse pessoal e de grupo.
Vem isto a propósito sobre um dos temas económicos que julgo ser aquele em
que o decisor político mais terá que se debruçar quando existir margem de
manobra para se baixar impostos de uma forma consistente e duradoura. Que tipo
de impostos reduzir? Os respeitantes ao consumo (IVA)? Ou os respeitantes ao
rendimento (IRC e IRS)? A vox populi,
dominada pela esquerda “esclarecida” em estreita associação com alguma direita
que tem receio de ser acusada de coração duro, vai proclamando que os impostos
sobre o consumo são aqueles onde se deve dar prioridade pois é onde as pessoas
de mais fracos recursos podem obter de imediato o benefício da sua diminuição.
Esta linha de pensamento unitário faz-nos sentir bem no salão e dormir em
consciência noite dentro. A questão é saber se isso é o correcto nas actuais
circunstâncias de Portugal e no tempo em que a acção decorre, que recordo ser a
segunda década do século XXI.
O meu pensamento diz-me que é precisamente o contrário que beneficiaria
Portugal, e nomeadamente as pessoas de menores rendimentos. Os argumentos que a
seguir se enumeram, ainda que vistos individualmente, penso que mais do que
sobram para nos convencerem que são os impostos sobre o rendimento que devem
ser diminuídos.
1.
A questão do
desemprego. A forma mais segura de criar novos empregos reais e não fictícios é
através da redução dos impostos sobre o rendimento. Para taxas de desemprego
na ordem dos 20% de mãos dadas com uma dívida acumulada absurdamente elevada é
perfeitamente estapafúrdio pensar noutro critério pois só o substancial
aumento das exportações pode absorver a imensa massa de desempregados. Hoje já
poucos colocam em causa o quanto a competitividade fiscal sobre as empresas foi
algo completamente descurado nos últimos 25 anos. Temos que pensar em ter taxas
de IRC na ordem dos 10%. O mesmo para o IRS, coisa que temo só compreendermos
tarde demais. E isto ainda que a expensas de aumentos do IVA do escalão mais
alto para 27% ou 30% no curto prazo.
2.
A questão da
globalização. A globalização, essa coisa em que fomos pioneiros e que nos devia
pensar que representa para o Lusitano muito mais oportunidades do que ameaças,
vai sinalizando que o jogo tenderá a correr tanto melhor quanto mais baixas
forem as taxas de imposto sobre o rendimento. Não discuto a globalização como
fenómeno porque não vale a pena dobrar uma realidade infinitamente poderosa, e
porque essa mesma realidade assenta lindamente ao perfil do verdadeiro
Português (não o da repartição, como é óbvio). E isto basta.
3.
A questão
demográfica. Acaso ainda não tenhamos percebido, este é o maior sarilho que
temos pela frente enquanto povo. Necessitamos com máxima urgência de importar
pessoas, acima de tudo pessoas altamente qualificadas, devido à diabolicamente
baixa taxa de fertilidade (o famigerado número de 1,3). Sabemos que os
trabalhos não estão fisicamente em Portugal em número suficiente para importar
umas 200.000 pessoas altamente qualificadas. Tão pouco atrairemos essa massa de
gente com os rendimentos que se pagam em Portugal aos trabalhadores do
conhecimento. Mas existem aviões e aeroportos, pelo que taxas de IRS ao nível
de 10% para rendimentos até 150.000 euros seria mais do que suficiente para
importar essa massa de gente que cá viveria. Sim, muitos trabalhariam
remotamente. E como as pessoas a serem importadas gostam de sol e praia, talvez
a coisa se torne muito mais fácil do que possamos pensar. E teríamos um
belíssimo efeito colateral, que seriam as visitas da família, amigos, etc, com
todas as consequências positivas para as exportações. Não esquecer que o
turismo é um bem transacionável, esse conceito que nunca deveria ter saído de
moda. Já agora afirmo que tomo como axiomático que se atraiem pessoas e
empresas para um país através de reduzidas taxas sobre o rendimento e não
através de reduzidas taxas sobre o consumo. Desafio qualquer um a fazer prova
contrária.
4.
A questão da
meritocracia. Este argumento é mais complexo, mas poderá ser sintetizado da
seguinte forma. Até ao terceiro quartel do século XX poder-se-ia pensar, ainda
que redutoramente, na sociedade como estando dividida entre quem detinha
propriedade e quem não a detinha. E genericamente aqueles que auferiam os
melhores rendimentos oriundos do trabalho estavam no grupo dos proprietários.
Como a globalização não era tão expressiva, a lógica da progressividade dos
impostos tinha todo o sentido. Ora no último quartel do século XX e ainda mais
no século XXI o figurino transformou-se. O maior grau da globalização
conjuntamente com o advento do conhecimento como factor decisivo na produção de
riqueza nas economias mais avançadas atenuam a fronteira entre proprietários e não
proprietários, criando uma imensa classe cada vez com mais peso e com acesso a
rendimentos médios e altos e que vale essencialmente por aquilo que o seu
conhecimento e talento são capazes de produzir. Por não deterem propriedade, esta
é uma classe que tem na meritocracia a sua oportunidade de ver melhorado o seu
nível de vida, pelo que tratar esta mole cada vez maior, senão mesmo como a
mais importante para catalisar as economia do século XXI (lembrar que a
escassez está no conhecimento e talento, não no capital), como ricos a quem é
preciso taxar à bruta é da mais elementar falta de bom senso. Sem contar que é
extraordinariamente injusto penalizar o mais produtivo e/ou aquele que mais
quer trabalhar.
5.
A questão da
produção versus consumo. É sabido desde há muito (Eça de Queiroz já o dizia…)
que temos uma congénita tendência para produzir menos do que consumimos. Aliás,
a crise actual é acima de tudo uma crise de balança de pagamentos (querendo
evitar entrar pela questão do valores). Pelo que aumentando o IVA do escalão
superior e reduzindo brutalmente as taxas de IRC e IRS aceleramos a resolução a
prazo deste assunto.
6.
A questão da
poupança e liberdade. Por definição alguém que seja menos taxado para um mesmo
nível de rendimento fica com mais rendimento disponível, e com isso pode efectuar
mais consumo ou poupar. Só o facto de passar a ter esta possibilidade, ou vê-la
ampliada, estamos a incrementar substancialmente o sentimento de liberdade das
pessoas. Sem contar que permite melhor planeamento financeiro de cada agente,
seja o indivíduo ou seja a família. E o facto de a poupança subir, pois nem
todo o rendimento adicional será direcionado para consumo, isso reduzirá a
nossa dependência como nação e viabiliza a independência no futuro, aumentando
assim a liberdade individual e a liberdade de Portugal, o que, e acaso
estejamos distraídos, se trata de um exercício simples para readquirir mínimos
de soberania e dignidade.
7.
A questão da
reforma de fundo do sistema de segurança social. Derivado de dar mais
oportunidade à poupança facilitamos politicamente a mudança do sistema de
segurança social de um modelo “pay as you go” para um modelo de capitalização,
coisa que fatalmente terá de ocorrer. E já nem invoco outros bons argumentos existentes
que vão neste sentido. É só olhar para a evolução irreversível da nossa
estrutura demográfica para os próximos 100 anos para perceber que a questão é
incontornável.
8.
A questão do
prazo de validade do conhecimento. Os altos impostos sobre os rendimentos mais
altos foram pensados para uma sociedade estável onde a mudança ocorria muito
devagar e onde os rendimentos só variavam no sentido ascendente. Noutros tempos
a variabilidade nos rendimentos ao longo da vida de trabalho era quase
inexistente pois um determinado conhecimento ou talento tinha uma esperança de
vida muito mais longa. Como a mudança nos dias de hoje ocorre a uma grande
velocidade, isso implica que um determinado saber tem um prazo de validade mais
curto, e de ciência certa que os rendimentos ao longo da vida de uma pessoa
estarão sujeitos a muito maior variabilidade pelo que não tem muito sentido um
modelo de progressividade neste novo cenário. Sem contar que nos períodos intermédios
entre saberes é mais do que provável a necessidade de investimentos em novos conhecimentos.
A síntese que acima descrevi nem sempre vem a público com a clareza e
profundidade que a nossa infeliz circunstância impõe, pois todo o espaço de
debate público é ainda dominado pela demagogia, oportunismo, histerismo e
resmunguice, fruto das péssimas elites políticas e dos grupos de interesse que
se habituaram a viver pendurados no orçamento do Estado e que demonstram não estarem
de todo capacitados para a função nobre de fazer política e tomar decisões para
Portugal. Infelizmente a razão ainda vai ter que esperar um pouco mais, embora não
muito, espero eu, pois o mundo lá fora não para à nossa espera.
Existem ainda três elementos subjectivos que sustentam o que acima se
defende. Primeiro, temos que respeitar o primado de que primeiro trabalha-se e
só depois é que se consome, o que trocado em português dá qualquer coisa como
não se deve colocar a carroça à frente dos bois. E como o contrário foi feito
nos últimos 25 anos há que compensar o erróneo comportamento passado e entrar
nos eixos para o futuro. Segundo, é preciso passar a mensagem à sociedade de
que o trabalho tem clara prioridade sobre o consumo como princípio genérico de
vida. Terceiro é da mais elementar justiça potenciar a mobilidade social
através do mérito pessoal. Numa altura em que o conhecimento e o talento são já
a principal fonte de riqueza das economias mais avançadas, e sendo que estes
atributos não são exclusivos de quem tem mais património, é fundamental não
penalizar os rendimentos do trabalho com impostos elevados, dando assim
fundadas esperanças para maior mobilidade social através dos méritos e não
através de esquemas poucos éticos e demais tropelias manhosas (fenómeno que nos
últimos anos também consolidou arraiais nos partidos políticos), e com isso potenciar
maiores níveis de confiança na sociedade.
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