Um amigo há uns anos contou-me um episódio curioso, passado nas estradas no Alentejo litoral, durante o Verão. Conduzia um «jeep» da mulher, que juntamente com as filhas o acompanhava no passeio. De repente, na margem do caminho, havia uma operação-stop na qual um agente da GNR passava os olhos pelos documentos de um automóvel que nesse momento estava parado, por indicação da força de segurança.
O meu amigo seguiu tranquilamente o trajecto por uns metros, até notar que o guarda em questão tinha largado os papéis que há instantes tivera nas mãos, e corria na sua direcção agitando os braços e soprando com vigor no apito. Era impossível ignorar que o guarda tinha algo de muito importante a dizer aos passageiros do Jeep.
Em consequência, o condutor parou o carro e esperou que o guarda, ofegante, lhe explicasse a razão para tanto alarido. Em troca, o GNR limitou-se a pedir os documentos da viatura. O meu amigo estranhou tanto zelo, ainda para mais quando o fulano se tinha desinteressado do trabalho que tinha em mãos há momentos atrás, com o outro automóvel.
O meu amigo foi entregando diligentemente a papelada toda, uma-a-uma: carta de condução, livrete, seguro, título de propriedade…
Eis então que o guarda «dispara»:
- E o documento da inspecção?!
- Sr.Guarda, este carro é relativamente novo – ainda não tem que fazer a inspecção…
- Tem, tem – replicou o guarda. – Este carro devia ter feito a inspecção no mês passado. Fez?!...
Ainda mal refeito da surpresa, o condutor lá balbuciou – Não…
- Então, vai ter que pagar a multa – rematou o senhor guarda. Ficando clarificado o mistério do súbito interesse que a ave de rapina tinha encontrado no (ou, na data da matrícula do) Jeep.
Estórias destas fazem parte da vida de quase todos os portugueses. Admitimos que no estrangeiro se possa fazer igual, ou pior – mas isso não branqueia a perfídia que existe por detrás do modo muito português de praticar a autoridade.
Entre nós, é vulgar ouvir-se a frase «o Estado não é pessoa de bem». É uma expressão que por acaso me faz alguma confusão. Para começar, como gosto de conceitos simples, à partida não me é fácil reconhecer uma «pessoa» no Estado. Na verdade, se os meus filhos de 8 anos me perguntarem o que vem a ser, afinal, essa coisa de «Estado», vejo-me logo em apuros para explicar.
O argentino Jorge Luís Borges, numa das mais famosas das «tiradas» que lhe custaram o Prémio Nobel da Literatura - que nunca lhe foi atribuído (os académicos do Norte da Europa gostam mais de galardoar gente da esquerda, nem que morem em moradia com piscina interior e vistas de mar) - opinou que os países e Estados são abstracções burocráticas, e que aquilo que conta realmente são os indivíduos. Sócrates, milénios antes, já havia divulgado entre compatriotas que não era ateniense, nem grego, mas cidadão do Mundo. Aparentemente, Luís XIV resolveu a coisa de um modo muito mais simples: «L’État, c’est moi!».
Porém, há realmente momentos em que os poderes que nos governam (chame-se-lhes o nome que se queira) têm motivações malvados e soezes. Todos sabemos que Portugal se encontra nas condições financeiras internacionalmente reconhecidas. A culpa não é da senhora alemã que agora temos visto em «outdoors» com uma garrafa de licor Beirão nas mãos, porque o país dela, apesar de ter sido devassado por 2 guerras mundiais (e respectivas indemnizações compensatórias aos Aliados, porque ambas foram perdidas pela Alemanha) nos últimos 100 anos, continua com uma solidez financeira invejável. Logo: teremos que pagar o que devemos, nem que haja sofrimento para todos. E eu sei do que falo, porque sou docente do ensino público, e já perdi meio-subsídio-do-natal este ano, e no próximo, será o que todos sabemos. Estou portanto solidário com o esforço nacional, e com o respectivo governo de salvação conduzido pelo Dr. Passos Coelho. Mas há coisas que passam dos limites!!!
Há uns anos, o cidadão português fazia bichas em tabacarias pelo país fora, a comprar o popular «selo do carro». Quando isso acontecia - e no modo invariavelmente incompetente próprio do tal «Estado», nunca era exactamente no mesmo momento do ano – toda a gente ia sabendo, e comprando a tal vinheta que depois colava no pára-brisas do carro. Fazia mesmo parte do calendário (volante…) da nação. Filhos iam comprar o selo a pedido dos pais. Amigos ofereciam-se com diligência: «Vou comprar o selo do carro. Queres que te compre também o teu?...»
Hoje, já não há nada disto. O selo, fisicamente falando, já não existe, o que traz desde logo ao Estado uma grande vantagem: não tem que se dar ao trabalho de o imprimir e distribuir. Esta vantagem não é pequena: o Estado gosta pouco de trabalhar. Hoje em dia, ou faz «outsourcing», ou então obriga o cidadão a fazer o papel que, a rigor, devia competir ao Estado. Ou seja: é cada vez mais difícil explicar aos meus filhos de 8 anos o que é o «Estado» e «para que serve» - uma vez que a «natureza da coisa» muitas vezes é mais fácil de caracterizar em acordo com o propósito que serve.
A nova modalidade, mais de acordo com a ficção que o senhor engenheiro José Sócrates criou de país tecnológica e ambientalmente evoluído, obriga o cidadão a apurar quando deve pagar o selo, havendo 365 possibilidades por ano em aberto – ao contrário dos velhos tempo, em que o país era atrasado e tosco, em que passávamos frente à tabacaria e de repente, a bicha de gente à porta fazia-nos lembrar que era tempo de tratar do selo do carro.
Perguntar-se-á o leitor: será que tenho saudades de passar meia-hora na bicha?! A resposta, obviamente, é NÃO. Mas tenho em compensação um certo apreço por sistemas transparentes, que se percebem, e que colocam cada um no seu lugar – Estado e contribuinte.
Imagine-se, em termo de comparação, que em vez da companhia de seguros onde temos o carro segurado nos enviar avisos para pagar, ou que o mesmo se passasse com os prestadores de infraestruturas (telefone, água, electricidade, etc.) – que competia à pessoa que é servida o ónus de descobrir quando lhe compete pagar. Não faz muito sentido, pois não?!
Já se adivinha ao que vou. Sou certamente acompanhado por milhões de portugueses, que nos últimos meses têm sido vítimas do mesmo assalto à mão armada por parte do Estado. Algum espertalhão deve ter tido a ideia luminosa de sacar ao cidadão retroactivos dos dias de atraso na liquidação do imposto em anos sucessivos que, muitas vezes, adveio simplesmente da ignorância do dono do automóvel. Se as pessoas já têm tantas coisas com que se preocupar, agora ainda têm que andar atentos aquele dia, de entre os 365 possíveis, para não entrar em incumprimento. É que JÁ NEM TEMOS A VINHETA NO PARA-BRISAS a lembrar-nos do facto. O país é moderno e inovador: já não precisa de vinhetas!!! Ou será que o Estado já estava a contar com a ignorância do contribuinte, justamente para o assaltar do modo que se tem visto?! Até os homens da Troika se devem ter espantado com tanto requinte!!!
E há mais: não deve haver pouca gente que, em operações auto-stop, em seu dia, tenha sido pesadamente autoado por causa de não ter o selo (que não existe!!!) pago, e agora vai ser novamente penalizado com a dita multa.
O meu amigo seguiu tranquilamente o trajecto por uns metros, até notar que o guarda em questão tinha largado os papéis que há instantes tivera nas mãos, e corria na sua direcção agitando os braços e soprando com vigor no apito. Era impossível ignorar que o guarda tinha algo de muito importante a dizer aos passageiros do Jeep.
Em consequência, o condutor parou o carro e esperou que o guarda, ofegante, lhe explicasse a razão para tanto alarido. Em troca, o GNR limitou-se a pedir os documentos da viatura. O meu amigo estranhou tanto zelo, ainda para mais quando o fulano se tinha desinteressado do trabalho que tinha em mãos há momentos atrás, com o outro automóvel.
O meu amigo foi entregando diligentemente a papelada toda, uma-a-uma: carta de condução, livrete, seguro, título de propriedade…
Eis então que o guarda «dispara»:
- E o documento da inspecção?!
- Sr.Guarda, este carro é relativamente novo – ainda não tem que fazer a inspecção…
- Tem, tem – replicou o guarda. – Este carro devia ter feito a inspecção no mês passado. Fez?!...
Ainda mal refeito da surpresa, o condutor lá balbuciou – Não…
- Então, vai ter que pagar a multa – rematou o senhor guarda. Ficando clarificado o mistério do súbito interesse que a ave de rapina tinha encontrado no (ou, na data da matrícula do) Jeep.
Estórias destas fazem parte da vida de quase todos os portugueses. Admitimos que no estrangeiro se possa fazer igual, ou pior – mas isso não branqueia a perfídia que existe por detrás do modo muito português de praticar a autoridade.
Entre nós, é vulgar ouvir-se a frase «o Estado não é pessoa de bem». É uma expressão que por acaso me faz alguma confusão. Para começar, como gosto de conceitos simples, à partida não me é fácil reconhecer uma «pessoa» no Estado. Na verdade, se os meus filhos de 8 anos me perguntarem o que vem a ser, afinal, essa coisa de «Estado», vejo-me logo em apuros para explicar.
O argentino Jorge Luís Borges, numa das mais famosas das «tiradas» que lhe custaram o Prémio Nobel da Literatura - que nunca lhe foi atribuído (os académicos do Norte da Europa gostam mais de galardoar gente da esquerda, nem que morem em moradia com piscina interior e vistas de mar) - opinou que os países e Estados são abstracções burocráticas, e que aquilo que conta realmente são os indivíduos. Sócrates, milénios antes, já havia divulgado entre compatriotas que não era ateniense, nem grego, mas cidadão do Mundo. Aparentemente, Luís XIV resolveu a coisa de um modo muito mais simples: «L’État, c’est moi!».
Porém, há realmente momentos em que os poderes que nos governam (chame-se-lhes o nome que se queira) têm motivações malvados e soezes. Todos sabemos que Portugal se encontra nas condições financeiras internacionalmente reconhecidas. A culpa não é da senhora alemã que agora temos visto em «outdoors» com uma garrafa de licor Beirão nas mãos, porque o país dela, apesar de ter sido devassado por 2 guerras mundiais (e respectivas indemnizações compensatórias aos Aliados, porque ambas foram perdidas pela Alemanha) nos últimos 100 anos, continua com uma solidez financeira invejável. Logo: teremos que pagar o que devemos, nem que haja sofrimento para todos. E eu sei do que falo, porque sou docente do ensino público, e já perdi meio-subsídio-do-natal este ano, e no próximo, será o que todos sabemos. Estou portanto solidário com o esforço nacional, e com o respectivo governo de salvação conduzido pelo Dr. Passos Coelho. Mas há coisas que passam dos limites!!!
Há uns anos, o cidadão português fazia bichas em tabacarias pelo país fora, a comprar o popular «selo do carro». Quando isso acontecia - e no modo invariavelmente incompetente próprio do tal «Estado», nunca era exactamente no mesmo momento do ano – toda a gente ia sabendo, e comprando a tal vinheta que depois colava no pára-brisas do carro. Fazia mesmo parte do calendário (volante…) da nação. Filhos iam comprar o selo a pedido dos pais. Amigos ofereciam-se com diligência: «Vou comprar o selo do carro. Queres que te compre também o teu?...»
Hoje, já não há nada disto. O selo, fisicamente falando, já não existe, o que traz desde logo ao Estado uma grande vantagem: não tem que se dar ao trabalho de o imprimir e distribuir. Esta vantagem não é pequena: o Estado gosta pouco de trabalhar. Hoje em dia, ou faz «outsourcing», ou então obriga o cidadão a fazer o papel que, a rigor, devia competir ao Estado. Ou seja: é cada vez mais difícil explicar aos meus filhos de 8 anos o que é o «Estado» e «para que serve» - uma vez que a «natureza da coisa» muitas vezes é mais fácil de caracterizar em acordo com o propósito que serve.
A nova modalidade, mais de acordo com a ficção que o senhor engenheiro José Sócrates criou de país tecnológica e ambientalmente evoluído, obriga o cidadão a apurar quando deve pagar o selo, havendo 365 possibilidades por ano em aberto – ao contrário dos velhos tempo, em que o país era atrasado e tosco, em que passávamos frente à tabacaria e de repente, a bicha de gente à porta fazia-nos lembrar que era tempo de tratar do selo do carro.
Perguntar-se-á o leitor: será que tenho saudades de passar meia-hora na bicha?! A resposta, obviamente, é NÃO. Mas tenho em compensação um certo apreço por sistemas transparentes, que se percebem, e que colocam cada um no seu lugar – Estado e contribuinte.
Imagine-se, em termo de comparação, que em vez da companhia de seguros onde temos o carro segurado nos enviar avisos para pagar, ou que o mesmo se passasse com os prestadores de infraestruturas (telefone, água, electricidade, etc.) – que competia à pessoa que é servida o ónus de descobrir quando lhe compete pagar. Não faz muito sentido, pois não?!
Já se adivinha ao que vou. Sou certamente acompanhado por milhões de portugueses, que nos últimos meses têm sido vítimas do mesmo assalto à mão armada por parte do Estado. Algum espertalhão deve ter tido a ideia luminosa de sacar ao cidadão retroactivos dos dias de atraso na liquidação do imposto em anos sucessivos que, muitas vezes, adveio simplesmente da ignorância do dono do automóvel. Se as pessoas já têm tantas coisas com que se preocupar, agora ainda têm que andar atentos aquele dia, de entre os 365 possíveis, para não entrar em incumprimento. É que JÁ NEM TEMOS A VINHETA NO PARA-BRISAS a lembrar-nos do facto. O país é moderno e inovador: já não precisa de vinhetas!!! Ou será que o Estado já estava a contar com a ignorância do contribuinte, justamente para o assaltar do modo que se tem visto?! Até os homens da Troika se devem ter espantado com tanto requinte!!!
E há mais: não deve haver pouca gente que, em operações auto-stop, em seu dia, tenha sido pesadamente autoado por causa de não ter o selo (que não existe!!!) pago, e agora vai ser novamente penalizado com a dita multa.
Por fim: o antigo selo dizia respeito ao imposto de circulação. Creio que, se o carro estivesse metido numa garagem o ano inteiro, não tinha que pagar selo – mas também não podia circular. Na actualidade, mesmo que o carro não tenho motor – terá sempre que pagar. Admito que haja algum regime de excepção e que o contribuinte, que arranjou emprego na Patagónia ou no Tibete, tenha um procedimento que o isente (ou ao seu carro) da liquidação do imposto, porque o tem guardado numa garagem em Benfica. Mas a possibilidade (a existir!) deve ser tão trabalhosa, que de certeza que dá muito menos trabalho pagar o imposto. E eventualmente também – a respectiva multa!!!
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