quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Porque não há "A Rua"

Uma das características do processo de ajustamento em Portugal radica na ausência do que se convencionou chamar “A Rua”. Por Rua entenda-se a manifestação de descontentamento por parte das massas pela rua de uma forma continuada. Muitos esperavam temerosamente, outros ansiosamente, que “A Rua” saísse à rua numa ira descontrolada ao serviço dos falhados engenheiros sociais que, por não conseguirem passar a sua mensagem nas eleições, rogam que um qualquer movimento social lhes dê de mão beijada na rua o que lhes é negado na urna. Acontece que a Rua decidiu democraticamente ficar em casa, ainda que contra todos os apelos mais frenéticos e irresponsáveis de muitas almas, algumas das quais já com idade para ter juízo, e outras ainda que vêm no juízo um inconveniente obstáculo para a sua praxis política.
 
Sabendo que nestas matérias a margem de erro na análise pode ser grande, vale no entanto a pena analisar um pouco a decisão democrática da Rua. Direi que os pressupostos que nos levariam a supor levantamentos populares, hordas num desaforo, ou massas desaustinadas já não se verificam. Para desespero do radical.
 
Para que os descontentes pratiquem Rua têm que se sentir violentamente desprovidos de tudo, ou quase tudo o que têm. Ora acontece que o pessoal da sindicância está muito longe de ter sido suficientemente despido quanto ao seu bem estar. Embora tenham visto o seu nível de vida andar para trás, ainda assim têm a noção de que estão bem melhor do que quem povoa a economia privada. E assim como assim ainda se manifestam, mas por comando do sindicato numa pura atitude corporativa. Mas só o fazem até um certo ponto, pois a consciência e o seu bom senso manda cuidar do que ainda possuem, pois não há racionalidade em trocar uma realidade que garante menos do que se tem a troco de uma realidade que nada tem para oferecer. Principalmente quando sentem que algo andou mal durante muito tempo e que há coisas a corrigir.
 
Dos que nada têm é que se poderia esperar problemas. Mas acontece que estes, embora novos e mais propensos na arte de atirar uma ou outra pedra, não têm família para sustentar, pois isto de casar aos 22 anos é coisa que terminou em Abril de 74. Agora este novo “pobre”, aburguesadamente descontente, vive em casa dos pais, possui telemóvel, e, imagine-se, até um pequeno cachet que lhe permite ser cosmopolita e adepto de uma cerveja no bairro alto enquanto discorre sobre a globalização. Não está propriamente para entrar em euforias de rua continuadas, ainda que no seu entender levar uma bordoada ou insultar um agente da autoridade lhe preencha o seu curriculum social e lhe dê audiência acrescida na próxima rodada de cerveja. Mas por aqui se fica. Que não se conte com esta personagem para modificar o rumo da sociedade.
 
Dentro dos que nada têm há também aqueles que poderiam de facto praticar Rua, pois há sempre os mais proactivos e decididos a fazerem-se à vida. Mas acontece que esta subespécie tem uma válvula de escape que se chama emigração e está positivamente disposta a dar-lhe utilização. Por estarem conscientes do legado que lhes foi deixado, por perceberem que há mais mundo do que aquele sugerido pela CGTP, por estarem mais bem equipados de conhecimento, e por haver um mundo que reconhece o Português como um ser de valor acrescentado mesmo quando joga fora de casa, este subgrupo entende que mais vale votar com os pés do que andar ao serviço de agendas de meia dúzia de manipuladores.
 
Acontece ainda que a modernidade socialista (para simplificação diga-se que a nossa modernidade teve o seu pontapé de saída em 1986) que tanto pugnou contra a família vê o tiro sair-lhe pela culatra. É que a nova taxa de natalidade fez com que a percentagem de jovens passíveis de querer mudar o mundo já não tem a proporção que tinha outrora. Quanto ao perfil direi que os valentões de 22 anos nascidos em 1991 não têm hábitos de luta pois pouco tiveram a disputar com os irmãos, porque ou são filhos únicos ou têm somente uma irmã. Ademais cresceram ociosamente com a play station e a internet, enviam sms e emails sem nunca terem experimentado as angústias das comunicações assíncronas, não foram à tropa, têm comandos à distância que lhes permite satisfazer as sensações de poder, nunca experimentaram horrores, como por exemplo os desenhos animados da Checoslováquia, e acima de tudo por fazerem gala na prática de um diletantismo ignorante que lhes tolhe a capacidade de utilizar o nervo. Por não saberem muito bem o que é a obediência ou o que é a capacidade de actuação conjunta, por não se deterem por muito tempo agarrados a uma causa devido à sua canina fidelidade ao que é efémero, uma parte dos jovens de hoje está fortemente despojada de fibra e de quantidade demográfica que viabilize a Rua.
 
Temos ainda uma outra categoria, um pouco instável derivado de rupturas conjugais, mas com um mínimo suporte familiar que lhe acaba por permitir equilibrar o barco. Este grupo, após a recente separação do casamento que “afinal não deu”, achou por bem retornar a casa dos pais, e do sofá de que aprendeu a não prescindir vai confortavelmente fazendo zapping sobre o que se passou nas escadarias da assembleia, e embora expectante sobre o desenrolar dos acontecimentos não coloca sequer a possibilidade de experimentar ele mesmo o desconforto e turbulência dos confrontos. E se algum pormenor lhe escapar sempre se pode saber algo mais lá pela noitinha no facebook.
 
Há ainda aqueles casos mais exotéricos. O grupo dos pequenos aldrabões e de algum beneficiário de RSI, que embora veja a malha mais apertada, ainda consegue acender o seu cigarro enquanto espera pelo café a ser servido pelo Evandro ou pela Yulia. Ainda que se sinta revoltado pelo facto de estes dias já não serem o que eram, o paradoxo da circunstância impede que cerrem fileiras. Por vergonha evitam lutar pelo que não querem assumir, sentindo-se melhor em magicar lá no seu cantinho novas formas de ludíbrio.
 
Por fim temos os casos mais complicados. Aqueles que de facto estão num profundo desamparo e sem verdadeiros meios de saída para a sua infeliz circunstância. Mas até neste ponto a sociedade de hoje arranjou mecanismos de mitigação do problema. Este conjunto de pessoas só quer que a economia recupere, e por isso não quer nada com revoluções.
 
Para grande infelicidade da esquerda radical e de alguns socialistas mais desorientados, lamento dizer que, após uma crise financeira mundial e uma enorme crise orçamental em Portugal, vão ter de esperar ainda muito tempo para ver algo que se pareça com um PREC. Mas porque gosto sempre de dar algum alento às pessoas, especialmente aos intelectualmente mais desesperados, direi que se esperarem por 2050 talvez tenham a oportunidade de verem muitos velhos a fazerem distúrbios pelas ruas de uma forma continuada.  

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