A grande maioria dos Portugueses ainda julga que a riqueza e bem-estar advêm da existência providencial de um qualquer Pote caído do céu, e à nossa inteira disposição, que nos sirva para moldar o mundo como ele deveria ser de acordo com o nosso imaginário. Isto manifesta-se aos mais variados níveis. Na política pensamos resolver os problemas despejando dinheiro (do infindável Pote, obviamente) sobre eles. Ao nível individual pensamos que a existência de um Pote nos garante, por si, a entrada no mundo da felicidade pela capacidade que ele nos dá de realizarmos o nosso ideal de bem-estar material. Ao nível social acreditamos que o Pote permitir-nos-á alcançar a projecção que de nós fazemos quando nos comparamos com aqueles que ansiamos alcançar. E ao nível económico o Pote permite-nos jogar em tabuleiros maiores do que o inicialmente possível.
O Pote tem por isso várias aplicações consoante o domínio onde decorre a acção. A questão não é nova. Por exemplo, a aristocracia, possuidora de inúmeros Potes até há bem pouco tempo, tratou sempre de configurar a atitude dos seus no eterno pressuposto de que existia sempre algures no tempo um Pote que resolveria todos os seus dislates despesistas e desmiolados. Não admira, portanto, que é raro encontrar um aristocrata de boas contas. É que faz parte da sua realidade viver a vida como ela é e sem atentar às disciplinas próprias impostas pela boa gestão, pois a adversidade e os resultados funestos da contínua desorganização seriam sempre ultrapassados por um qualquer Pote que surgisse por aí deixado por um parente.
A um nível burguês e campesino, o Pote foi sempre algo muito apetecível. Era o garante da passagem para o nível imediatamente a seguir da escala social. Assim garantia a delícia de não ter de passar por tantas provações do nível agora imediatamente inferior. Estes Potes, e ao contrário dos da aristocracia, não caiam do céu. Eram sempre o resultado acumulado de uma ou duas gerações acima, e sobre o qual a geração que o gozava dele retirava a sua utilidade para o processo de escalada social. Será porventura o exemplo dos pequenos proprietários imobiliários de Lisboa.
Ao nível do género, sempre foi frequente as mulheres procurarem os homens que lhes garantissem que a descendência não correria os riscos de enfrentar as inconvenientes turbulências financeiras. Assim, homem que possuísse um Pote, ainda que Potezinho, teria sempre a garantia de uma companheira que preteriria as doçuras das suas paixões às vantagens derivadas de um Pote. Aliás, e uma vez no gozo do Pote, os seus amores poderiam ser sempre vividos noutro lado.
Ao nível do país verificamos que Portugal adoptou a filosofia do Pote após o 25 de Abril. Inicialmente estoirou-se grande parte das reservas acumuladas. Depois descobriu-se um Pote bem gordo que vinha de Bruxelas. E por fim arranjou-se um Pote que afinal não o era: o endividamento. Este último afigura-se agora um (pseudo) Pote bem venenoso, como aliás andamos agora a comprová-lo.
Nunca fui muito adepto da teoria do Pote. Provavelmente por nunca ter provado nenhum. Ou se calhar por percepcionar que se nos encostarmos a um isso nos poderá amolecer o espírito e toldar funestamente o nosso nervo, quer pela redução da ideia, quer pela diminuição da energia, e com isso perdermos a vontade da conquista e consequentemente perdermos um pouco da nossa alma.
Creio bem que Portugal amoleceu o espírito nestes últimos 25 anos porque a filosofia do Pote tomou conta de nós. De nós agora nada esperamos pois dos Potes agora perdidos tudo esperávamos. Neste momento, calados pelo temperamento, mas revoltados pelo engano em que incorremos, vivemos uma dor difícil de suportar, mas que fatalmente teremos de ultrapassar. Resta saber como livremente reagiremos, se vulgarmente pelo uso banal do berro como expressão dessa dor, se pela energia e nobreza que nos ilumina o espírito e nos acalenta a alma.
Eça de Queiroz escreveu na “A Capital” a seguinte passagem:
“E um dia, ao jantar, Damião, muito severo, voltou-se para o Pote-sem-Alma:
--- Pote, você todas as noites lamenta a perda da sua prima Felícia, de um modo que nos é insuportável. Você, como homem e como pote, é livre, e não podemos proibir-lhe o queixume. Mas temos direito ao menos a que dê à sua saudade uma expressão literária e nobre. E já que Deus, para usar este termo obsoleto e convencional, lhe deu em gordura o que lhe recusou em ideia, aqui o amigo Taveira encarrega-se de lhe formular, em duas ou três estrofes correctas, um grito de desespero decente. E o Pote há-de ter a bondade de usar, de ora em diante, esta fórmula sempre que o dilacere a dor dessa paixão infeliz”.
Não espero que Portugal finja não ter a dor que o assola. Espero somente que ultrapasse esta fase com nobreza e se prepare condignamente para, ele mesmo, criar o seu Pote e parar de pensar que os Potes caiem do céu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário