segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Da Língua Portuguesa

O colega Frederico Salema enuncia no seu «post» que as razões para se discordar do acordo ortográfico são múltiplas. Eu aproveito o ensejo para tomar o fio de uma só dessas meadas - aquela de que eu gosto mais, que pela sua dimensão literária me diverte mais do que as outras todas: o aspecto da herança cultural.

Uma língua, como várias vezes afirmou Jorge Luís Borges, é uma comodidade intelectual, e o conceito de «país», uma abstracção em que o escritor argentino acreditava pouco. À maneira do grego Sócrates («Não sou grego nem ateniense, sou cidadão do Mundo»), Borges era ferozmente independente (mas também tímido e de algum modo misantropo). Preferia portanto certamente o indivíduo ao grupo.

Aparentemente, quando a Argentina ganhou à Holanda no Mundial de futebol de 1978, Borges ficou perplexo com os festejos, recusando a noção de que 11 homens vestidos de igual vencendo uma partida desportiva contra outros 11, pudessem significar que um país tivesse vencido outro. Bem vistas as coisas – se um país é uma abstracção, uma «selecção nacional» é uma abstracção sobre uma abstracção. Regressemos, contudo
à «língua»:

Mesmo a língua, para Borges, tinha as suas limitações. Em «Das alegorias aos romances» (Outras Inquirições, 1952), cita com humor:

Chesterton, para reabilitar o género alegórico, começa por negar que a linguagem esgote a expressão da realidade. «O homem sabe que há na alma matizes mais desconcertantes, mais inumeráveis e mais anónimos do que as cores de uma selva outonal. No entanto, julga que esses matizes, em todas as suas fusões e transformações, são representáveis com precisão por um mecanismo arbitrário de
grunhidos e de guinchos. Julga que de dentro de uma bolsa saem realmente ruídos
que significam todos os mistérios da memória e todas as agonias do desejo.»

Naturalmente, sendo escritor e, sobretudo, leitor, a língua, sobretudo sob a forma escrita, era algo que ele amava mais que tudo. Erudito que era, conhecia-lhe as raízes históricas e culturais, e saberia, como nós, que a língua não é uma ferramenta utilitária que se troca por uma nova quando avaria. A língua é um artefacto imaterial construído na passagem dos séculos. Assim por exemplo, os ingleses (e os franceses) não abdicaram do «Ph» para pronunciar o fonema «F»: topography,philosophy, pharmacy… Estamos aqui nos domínios greco-romanos, onde a letra F não existia – portanto, a persistência em conservar certos fonemas linguísticos aproximam-nos do nosso passado colectivo. Acresce que a escrita nos aproxima, neste casos, da natureza daquilo que a palavra descreve: Philo (amor) + Sophia (conhecimento), ou Phila (amor) + Delphia (irmandade)= amor fraternal. Do mesmo modo que acção, deriva do latim actionis. Os romanos não usavam do C cedilhado – o T fazia o seu lugar. Ou já agora, o C da palavra «acta», que em latim se escrevia tal-e-qual,mas que agora o acordo converteu em ATA. O mesmo com «fracção», de «fractionis». Se para mais nada servir,o C mudo estavam lá para nos lembrar de mais 2 milénios de história - que, quando retiramos o C mudo estamos de golpe a renegar.

Tudo isto para dizer que além de legado histórico, a língua é também aproximação possível do conhecimento da História. O acordo ortográfico, pelos vistos, não tem qualquer interesse por isso.

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