DOMINGO, 18 DE ABRIL DE 2010
O Carlos nasceu em Loures em 1979. Filho de um engenheiro de origens serranas e de uma professora primária originária de Lisboa, o Carlos teve uma infância crescentemente fácil juntamente com os seus 2 irmãos. O Avô paterno de Carlos estabelecera-se em Loures em 1948 onde trabalhou arduamente numa pequena padaria de que era sócio; a Avó sofria de uma doença e só a espaços ajudava o marido. O Avô materno de Carlos era operário e a Avó materna doméstica.
A vida sorriu aos pais de Carlos. Até 1985 viviam comodamente, embora sem grandes margens para veleidades que não as que bastassem a uma vida pacata e sem sobressaltos económicos. A segunda metade da década de 80 e toda a década de 90 correu ainda melhor aos Pires, o que lhes permitiu dar aos filhos aquilo que eles não tiveram na infância. Assim, o Carlos cresceu abundantemente com telemóveis, play stations, computadores, e toda a gadjeteria galopante que acompanhava a pequena bonança dos Pires. As férias no Algarve, e duas ou três idas ao Brasil faziam também parte do pacote de estilo de vida. O Engº Pires, apreciador de bons carros, permitia-se agora gozar a condução de BMWs, marca que considerava que acompanhava bem os confortos de que não prescindia. Um estilo que os avós de Carlos nunca ousaram sonhar.
O Carlitos, como era conhecido no seu bairro, embora desconhecesse o conceito de privação, carregava a longínqua imagem das histórias e fotografias dos seus avós. Percebendo a evolução geracional, embora nunca desrespeitando as suas origens, sentia-se sempre um pouco embaraçado na relação com as suas origens. A ponte com os Avós era difícil. As vidas marcadas do passado demonstravam ser de combinação difícil com a desenvoltura e facilidades da infância do presente. O Carlitos considerava que à sua pessoa estava garantida a continuidade da bonança, e quiçá até alguma pequena fortuna. E por uma questão de princípio, resolveu até estudar, cursando gestão de empresas por uma ainda recente universidade privada.
Acabado o curso, o Carlitos arranjou trabalho numa pequena consultora que viera a falir em 2005 quando ia no seu terceiro ano de experiência laboral. Ainda a viver em casa dos pais, o Carlitos vê-se depois a trabalhar para um Revisor Oficial de Contas. Um ano depois casa-se com Célia Machado, fulgurante figura formada em Marketing e a trabalhar para uma revista de moda. Vão viver para Telheiras, terra que vê nascer o pequeno Tomás em 2007. A vida não começou a correr mal à nova geração Pires, mas as longas jornadas de trabalho vão criando alguma turbulência. O casamento “não está a dar” ia dizendo o Dr. Carlos. Três anos depois separa-se ao saber que a Célia tem um caso com o director financeiro da revista.
A vida começa então a tornar-se mais complicada para o Carlos. O divórcio implicou custos, muitos custos. Célia, bem aconselhada pela sua nova conquista, um conhecido advogado de Lisboa, consegue extorquir uma bela pensão de alimentos a Carlos. Carlos vê-se obrigado a ir para um apartamento menos ambicioso, um T2 situado nas Olaias. A prestação e as pesadas revisões do BMW tornam-se mais difíceis de suportar, mas o barco ainda se aguenta. O pior mesmo é a retirada de alguns benefícios e prémios até então prática do ROC para quem trabalha. A crise financeira chegava a todas as actividades. Para dificultar, os juros do empréstimo da casa começaram a subir pouco a pouco a partir de 2011. Muitas restrições instalam-se na vida de Carlos, num perfeito contraste com as expectativas iniciais. Mas o Carlos aguenta-se um pouco com uma herança de 40.000 euros da Mãe (entre dinheiro e umas jóias pertença da Avó) que entretanto falecera devido a problemas alcoólicos com origem num divórcio que se revelou muito conturbado.
Carlos casa uma segunda vez com Susana Cardoso, uma professora de sociologia, já divorciada e com dois filhos, e que dá aulas numa escola privada. Vende o T2, e tem que suportar menos valia de 20.000 euros devido à descida dos preços do imobiliário em Portugal. Ainda assim consegue uma boa compra de um T3 em Loures. A vida parecia um pouco mais equilibrada entre 2012 e 2014. No entanto duas questões complicaram a vida a Carlos. O colégio para onde Susana trabalhava fechara no início de 2015 por falta de alunos. Aliás, o fenómeno começara a ocorrer com frequência a partir de 2015 dada a pequena taxa de fecundidade que se ia, reiteradamente, verificando em Portugal a partir de 2000. Susana, que no ano anterior tinha efectuado um aborto, ia agora denunciando desequilíbrios emocionais muito grandes.
Os anos foram passando e a vida não tinha especiais atractivos para Carlos. Em 2030, já com 50 anos, Carlos vê-se a trabalhar ainda no mesmo ROC, numa actividade que não aprecia, a ganhar pouco e com uma mulher infeliz (Susana vai conseguindo alguns trabalhos temporários, não especializados, que outrora eram executados por imigrantes que entretanto foram saindo do País). Somente o filho Tomás lhe vai dando alegrias. Tomás cursara engenharia e fora um aluno brilhante. Lutador, como toda a sua geração, iniciara-se a trabalhar para uma empresa alemã com variadas obras na Líbia e Tunísia, países onde a democracia ia dando os primeiros passos. Os filhos de Susana revelaram-se menos brilhantes e um pouco mais instáveis. Ainda assim demonstravam ser muito trabalhadores, pois desde cedo foram “convidados” a partilhar algumas despesas de casa. O João emigrara para Angola como encarregado de obras, e o Filipe era segurança da central nuclear recentemente inaugurada em Portugal (em 2013 um acordo europeu elaborado em conjunto com o FMI desenhara uma estratégia para acabar de vez com os desequilíbrios externos de Portugal, e a opção nuclear entrava no pacote; imperativos externos foram, à época, necessários para manter Portugal na zona Euro).
Já mais velho, com 60 anos, Carlos e Susana tomam uma importante decisão. Pedem a reforma antecipada assumindo a respectiva penalização, vendem o T3 em Loures, já integralmente pago, mas por metade do preço pelo qual o compraram (Portugal contava agora com 8 milhões de habitantes e o excesso de casas era evidente), e vão viver o resto da vida para Moçambique. As insípidas vidas que muito Portugueses levavam, decorrente das constantes expectativas defraudadas, tinham radicalizado muitas opções de muitas famílias em Portugal.
Em Moçambique Carlos e Susana arranjaram ainda energias e iniciativa para abrir um pequeno café com o dinâmico e empreendedor João, filho de Susana, e que entretanto regressara de Angola. A pequena povoação no norte de Moçambique onde se estabeleceram ganhara importância e o negócio permitiu a Carlos e Susana viverem um resto de vida cómodo. Carlos ia então realizando o quanto os anos passados em Portugal o massacraram. O divórcio com Célia, o despedimento e o aborto de Susana, as constantes e reiteradas defraudadas expectativas fruto de promessas fáceis e em voga na altura, e a falta de objectivos pessoais (perfeita sintonia com a sociedade Portuguesa do virar do século e do início do século XXI). Comparava tudo isso com a alegria e pujança do seu filho e dos filhos de Susana, todos trabalhadores, lutadores, honestos, e com objectivos. E ia achando sempre curioso o facto de que a vida para esta geração não se tinha demonstrado fácil nos primórdios. Até achava Portugal agora mais dinâmico, sinal talvez de que a irrequietude das gerações mais novas em muito contrastava com a atitude da sua geração, que sempre tomara tudo como de acesso garantido.
Carlos jaz agora em terras moçambicanas. Mas a sua história não foi esquecida, pelo contrário. Como muitas outras histórias similares, a história de Carlos faz parte de uma colectânea recente sobre o estudo da evolução de Portugal dos fins do século XX e primeira metade do século XXI, estudo esse efectuado pela Universidade de Maputo em estreita colaboração com a Universidade de São Paulo, e que muito tem servido para a compreensão das novas relações dos povos de língua oficial portuguesa.
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